Da efemeridade e da memória no teatro

Dando-me ao trabalho de (re)folhear as “Histórias do Teatro” que tenho cá por casa, tirando uma ou outra referência à arquitectura e/ou ao espaço cénico propriamente dito, confirmo serem muito raros e muito passageiros outros registos que não sejam os da literatura dramática. Actores e encenadores passam-lhes ao lado ou referidos muito marginalmente em alguns casos.

Todavia o teatro é em si mesmo um género artístico que só o é quando e porque de palavra escrita se transmuta em palavra dita, movimento, gesto. E daí, precisamente, a sua efemeridade: trata-se de uma expressão artística que, de resto, como teatro e enquanto teatro rigorosamente falando, só existe no espaço da sua apresentação; é um “produto” auto-consumível, de desgaste imediato durante a (re)criação do acto cénico, representação.

Por isto mesmo – e pelo peso que a literatura dramática, na tradição europeia, teve na vida e na praxis do teatro em si mesmo como base e elemento indispensável ao acto até ao século xx – se compreende que assim seja. Interessante, porém, seria pesquisar mais atentamente no passado longínquo e escrever do passado recente uma história universal do teatro a partir do espectáculo. Companhias elas-mesmas, experiências pontuais, actores e encenadores do século xx foram a base mais relevante da inovação teatral e, a par com muito poucos autores de textos, a mais decisiva no que subiu, se viu e se afirmou nos palcos. O próprio Brecht, nome incontornável da cena no século xx, ficará na história do teatro muito mais pela sua teoria e pela praxis (própria e de contemporâneos e continuadores) do que pelos dramas que escreveu. Destes, é minha convicção, com a poeira dos anos, sobreviverão uns 3 ou 4, enquanto algumas das suas formulações práticas subsistirão – em si mesmas ou diluídas em outras e novas teorias – por muito mais tempo, indelevelmente.
Assim, neste quadro, me parece cada vez mais urgente, cada vez mais importante, preservar as memórias das nossas efemeridades, sendo que a vida, ela-mesma, é um efemeridade, cuja continuidade depende da transmissão das memórias em si mesmas… O registo mecanográfico que hoje se pode realizar por novos e mais ou menos sofisticados meios tecnológicos é, sem dúvida, útil e um boa achega ao contornar dessa efemeridade. Mas não basta. Trata-se, para todos os efeitos, de uma recriação do objecto artístico em si mesmo. E trata-se, além disso, no desgaste do tempo, de uma reprodução asséptica. O papel que a historiografia contemporânea e a crítica como parte activa e subjectiva dela mesma podem desempenhar é, para mim, absolutamente indispensável.

Mesmo assim, à parte esta coisa de registo, a memória faz-se pela transmissão oral, pela evocação e pela criação de referências em cada época com referências de outras épocas. E isto, lamentavelmente, no universo do teatro português vem acontecendo cada vez menos. Nas escolas olha-se e reflecte-se muito sobre tendências contemporâneas estrangeiras (o que é essencial), mas descura-se a memória da nossa prática teatral… Nas gerações mais jovens desconhece-se, por exemplo e na esmagadora maioria dos casos, quem foi Irene Isidro, Laura Alves, António Pedro, Fernando Gusmão, Rogério Paulo, Ivone Silva… E chega-se mesmo ao absurdo de pensar que Beckett (estreado em 1958 pela mão de Ribeirinho, que também já ninguém com menos de 40 anos sabe quem foi - digo: quem é) é uma descoberta de agora em Portugal! Tudo se passa – Santo Deus! – como se o teatro tivesse nascido (e se calhar fosse morrer!) no umbigo de cada um de per si! Como se o teatro fosse de geração espontânea, como se nem sequer houvesse um caldo orgânico para anteceder a genialidade que cada um e cada qual julga ser a sua própria e exclusiva!

É, pois, tempo de falar dos nossos progenitores teatrais e respeitar o nosso passado colectivo. Um homem sem memória diz-se amnésico. E um teatro sem memória? Moribundo?

Sem memória não chega a haver identidade: nas pessoas, nas instituições, na vida…

Castro Guedes, encenador
in TriploV

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