QUE TEATRO NACIONAL PARA O SÉCULO XXI? por Castro Guedes







Em resposta ao convite feito pelo Teatro Nacional Dona Maria II, numa iniciativa que registo com agrado, pois trata-se de matéria cuja discussão – como muitas outras – está por fazer em Portugal, optei por escrever este texto, que enviei e pedi para ser lido.
Antes do mais, sobre algumas das considerações que nos são propostas no convite como possíveis e passíveis de discussão, direi:
a) O conceito de “teatro nacional”, na acepção de uma dramaturgia portuguesa, não só me faz todo o sentido no século XXI, como, face à globalização (com tudo o que ela tem de bom e tem de mau), parece-me uma urgência e uma emergência na resposta a um processo que tende a uniformizar e descaracterizar o local, o que eu acho negativo. Como inscreve, aliás pertinentemente, o Fórum Social Europeu no seu programa de acção política é preciso “pensar universal e agir local”. Ora, em teatro, isto para mim quer dizer que, abertos aos conteúdos e formas mundiais, não devemos descurar nem depreciar o que tem características específicas, no caso “nacionais”. A língua é um instrumento que, se exprime o pensamento, o formata também em si mesmo. Se, como para Pessoa “a minha Pátria é a Língua Portuguesa”, de que outro modo identitário poderia eu exprimir-me também e tão bem no diálogo cénico? A uniformização de uma corrente estética ou modo de afirmação artística, mesmo que travestida da democraticidade modernista ou pós-modernista, não deixará de ser o horror totalitário de um estética oficial ou oficiosa com todo o cortejo sobejamente conhecido de mediocridade e exclusão do outro, mesmo que ao papel ditatorial do Estado se substitua o Mercado ou, simplesmente, os “revisores oficiais de contas estéticas” da opinião publicada e/ou decisores dos investimentos dos dinheiros públicos…
a.1) De resto, como sou dos que crêem no regresso da palavra ao palco – regresso com o actor – como tendência europeia dominante, não vejo porque excluir o conceito de “teatro nacional” da contemporaneidade… Esgotadas e esvaziadas de sentido as fórmulas da “expressão corporal” como “ciência” autónoma de realização teatral, datadas e ultrapassadas as experimentações do hapenning e do improviso, assimiladas pelas artes plásticas (para mim em duvidoso gosto) as tendências performativas conceptualistas, a palavra – enriquecida pela equalização do movimento e do gesto com ela, e liberta das intermináveis didascálias substitutas da arte da encenação – é, de novo, ponto de partida e ponto de chegada da poetização cénica feita com a emoção e o relevo do corpo do actor e das maquinarias cenograficamente inventadas. E muito sinceramente acredito que a palavra não é precisamente a mesmíssima coisa que le mot, the word, die wort, la palabra, la parola… , como ainda recentemente o afirmei num Encontro de Lusofonia e sobejamente o creio implícito no mais basilar contributo do Estruturalismo quando nos faz compreender a dialéctica entre significado e significante.
a.2) Infirmar a existência de um “teatro nacional” (português) é quanto a mim tão deslocado de toda e qualquer teoria seriamente sustentável que nem vou perder tempo a afirmar que sim. Para mim é um dado adquirido que não carece de demonstração, a não ser, eventualmente, num plano meramente académico, ou somente especulativo, que não tem utilidade enquadrar-se neste debate. Já agora quanto às suas especificidades e caracterização o assunto desperta a minha atenção e regozijo-me com a sua consideração, mas é-me suficientemente difícil para me sentir com capacidades para argumentar com um mínimo de pertinência, pelo que o deixo para outros o fazerem. Só direi, de passagem, que a sua paternidade, no meu jeito de ver o teatro, não reside exclusivamente na dramaturgia portuguesa mais elaborada, mas também nos autos tradicionais portugueses e em formas cénicas de raiz popular que ultrapassam o texto, como o podem ser as festas dos caretos, para dar um mero exemplo. De resto, estou em crer que na prática cénica, passada ou presente, encenadores (e até actores) expressam-se em moldes que estão inevitavelmente contaminados pela maneira de ser português, seja lá o que for esse “labirinto da saudade”, que Eduardo Lourenço fez prova existir.
b) A persistência dos Teatros Nacionais – agora na acepção de entidades produtoras e difusoras do espectáculo teatral – como “lugares de memória cultural e de valor simbólico” tem, para mim, toda a razão de ser. Desde logo pelo que fica implícito na abordagem da questão anterior, mas não só. Os Teatros Nacionais podem – e devem ser – também (e como melhor explicarei à frente) lugares privilegiados de transmissão de valores universais do património da Humanidade (digo os clássicos) que o restante teatro, até por limitações financeiras (de elencos e meios técnicos) não pode realizar. Um Teatro Nacional que o não integre enquanto parte constitutiva do seu reportório será um Teatro Nacional desvirtuado de uma das suas missões e eixos fundamentais e justificativos de si mesmo pelo esforço financeiro que ao Estado acarreta. Aqui, com Torga, recentemente relembrado por Jorge Sampaio, direi que “o universal é o local sem muros”, o que não negando a necessidade do “local” como antes defendi, pressupõe a abertura a horizontes mais abrangentes e mais vastos que tragam ao presente o passado que o fez. A ideia, absurda, de que o contemporâneo se pode afirmar por si, em si e para si (no sentido hegeliano da coisa), é tão anti-científica e inverdadeira como a teoria criacionista em que aparecemos à face da Terra tal qual somos como produto acabado. Os alelos da contemporaneidade cultural determinam-na com base na genética das heranças culturais que somos. Ignorá-lo é, além de tudo, a mais acabada forma de ignorância. E o “serviço educativo” de um Teatro Nacional passa, quanto a mim, pela preservação e transmissão de memórias, elas próprias linguagem construída e adquirida no Tempo para a caracterização e consumação do teatro enquanto objecto próprio.
c) A “oposição entre afirmação de uma identidade nacional através do teatro e a transnacionalidade das criações contemporâneas que circulam em festivais ou fazem parte de projectos europeus”, para mim, simplesmente não existe. A formulação da própria questão encerra uma visão algo antinómica do que pode, deve ser e é o teatro enquanto projecto de expressão humana social e artística. É que, tal como esta, é o teatro tanto mais rico quanto mais diverso e pluriforme: nas estéticas, nos processos criativos, nos estilos, nas finalidades para que concorre. Não vejo, por exemplo no caso da intervenção estatal de financiamento do teatro privado, porque não se há-de o fazer em direcção a múltiplos (quiçá divergentes) rumos: experimentação e reportório, inovação e tradição… A “transcionalidade” que se refere ocupa – e muito bem – o seu lugar próprio nessa diversidade que se reclama e se exige, mas não exclui nem substitui o carácter identitário dos “teatros nacionais”: bem pelo contrário, como o demonstram ao limite as experimentações e criações de Peter Brook, em que a adopção de elencos transnacionais e mesmo de linguagens multiculturais locais integram um objecto cuja imanescência antropológica se afirma pelo particular…

Dito isto gostaria, num campo mais pragmático e mais objectivo, de deixar à vossa consideração o meu ponto de vista “orgânico” sobre as missões de um Teatro Nacional em Portugal, no ano concreto de 2009 e nos próximos 10 ou 20 que se seguirão:
1. A razão porque o Estado investe no teatro decorre de se tratar de um sector que, à semelhança da saúde ou da educação ou da justiça (para dar alguns exemplos) não pode gerar por si só receitas auto-bastantes se, como bem o disse Strehler, “quiser cumprir um verdadeiro serviço público”.
2. Esse investimento, todavia, não é um investimento socialmente vazio, nem deve fazer-se em direcção à satisfação ou sequer sobrevivência dos criadores. Trata-se de um investimento repercutivo em direcção à instrução pública dos cidadãos.
3. O grosso desse investimento faz-se ao nível do apoio (supletivo) à iniciativa privada (empresas e/ou cooperativas) porque o Estado sabe que isso lhe é muito mais barato, como se pode comprovar ao comparar orçamentos ou, melhor ainda, se se quantificar a quanto sai cada um dos espectadores.

4. Assim, o valor e significado do investimento em teatros nacionais só se explica e aceita se estes apresentarem uma maximização dos seus próprios recursos, quer nos indíces públicos para avaliação, quer na qualidade-exemplaridade da sua produção.

5. Pelo que os respectivos “números” devem ser públicos e publicamente divulgados.

6. Mas não só: para maior transparência de todo o processo recomenda-se que as direcções dos teatros nacionais resultem de concursos públicos e não de nomeação ministerial.

6.1. não tanto pela igualdade de oportunidades dos criadores, mas pela necessidade de aprofundar o carácter técnico-artístico em detrimento da componente político-pessoal.
6.2. justamente para colocar visões político-culturais num patamar suprapartidário, transparente e de discussão alargada.
6.3. justamente para evitar a tentação do gosto pessoal ou das preferências meramente estéticas deste ou daquele ministro, que podem fazer um equipamento público cair na arbitrariedade subjectiva.
6.4. em última análise para, também no plano formal, tornar autenticamente independente o exercício do cargo da direcção.

7. E, por isso, nesses concursos devem ser inclusos de forma muito clara quais os objectivos gerais e quais as metas dos teatros nacionais para um mandato de uma direcção.

7.1. É que, neste contexto – e justamente na inversa do que na generalidade tem acontecido até aqui , o Estado deve ter um ponto de vista cultural e assumir essas responsabilidades sociais.
7.2. Não deve ter – mas tem tido abusivamente muitas vezes – é uma “escolha” estética oficial ou oficiosa…

8. Assim, a meu ver, nesses objectivos, julgo que, entre outros, vale a pena considerar ser dever de um Teatro Nacional:
8.1. realizar um reportório, clássico e contemporâneo, preferencialmente incidente em montagens que pela sua complexidade, elenco numeroso, custos de produção, não estejam ao alcance do sector privado financiado.
8.2. garantir que esse reportório seja maioritariamente acessível aos públicos, sem, contudo, resvalar para características “popularuchas” e/ou de feição nitidamente comercial.
8.3. preservar uma parte significativa desse reportório (nem que seja pela obrigatoriedade de uma produção anual) para textos da dramaturgia portuguesa .
8.4. organizar elencos e produção em ordem à continuidade do reportório realizado (reposições e prolongamento em carreira das obras) e baseados na sua qualidade e na rentabilização dos meios estruturais pré-existentes (elencos e materiais).
8.5. acompanhar a produção teatral de sistemas de formação de públicos, com especial incidência ao nível da escola.
8.6. promover a edição de textos (peças, ensaio, pesquisa) em torno da sua própria produção.
8.7. estimular e exigir-se a diversidade estética e estilística por forma a ser tendencialmente abrangente da diversidade da criação nacional.
8.8. articular-se com redes internacionais de teatros (europeus, lusófonos, ibero-americanos), por molde a projectar a produção nacional no estrangeiro e a acolher a produção estrangeira entre nós.
8.9. assumir o seu carácter geograficamente nacional apresentando-se regularmente pela rede de teatros e cine-teatros do país.

9. E, completando a definição pela negativa, o que um Teatro Nacional não deve ser jamais é:
9.1. um mega-grupo “independente” de reportório “alternativo” de si mesmo!
9.2. um lugar que assente primordialmente numa experimentação vanguardista.
9.3. uma espécie de “garagem” para estacionar projectos alheios e avulsos.
9.4. um local de réplica de reportórios importados do teatro comercial no estrangeiro.
9.5. uma casa de produção desorganizada sem projecto e sem plano, navegando à vista ou ao sabor das modas.
9.6. um tapete estendido para o apaziguamento de lóbis e grupos de pressão.
9.7. um off-shore artisticamente blindado para o depósito de grupo(s) ou facção.

10. Além disto tudo e de forma muito transparente para o contribuinte, um Teatro Nacional deve ter um caderno de encargos que “tabele” mesmo “mínimos” indiciadores de eficiência com o número de representações (180?), de estreias (6?), de taxa de ocupação da lotação (+ de 50%?).

Dito isto resta-me desejar que a tão necessária confrontação de pontos de vista sobre arte e sobre cultura no teatro português possa aqui ter tido tão só o início de um diálogo sempre adiado por impreparação de muitos, mas também de cobardia ou oportunismo de outros.
Castro Guedes, Encenador

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