"Estamos sempre a lamentar-nos em vez de trabalharmos com o que temos"


No Teatro Nacional de São Carlos, o maestro britânico Martin André tem aprendido a gerir por antecipação escassos recursos financeiros. Pretende captar novos públicos e fazer alternar o grande repertório operático com produções mais leves no Salão Nobre, incluindo criações portuguesas do passado e do presente. E já comprou um cravo.

O maestro britânico Martin André mudou-se para Lisboa e assumiu as funções de director artístico do Teatro Nacional de São Carlos há seis meses e ainda está a "arrumar a casa", pois sem essa base é difícil servir o público e os artistas. A organização interna do teatro, tornando a comunicação e a gestão das tarefas mais ágil e permitindo-lhe estar permanentemente a par do que se passa, foi a sua prioridade inicial. Gostava que o trabalho decorresse "como numa colmeia", em direcção a um "objectivo comum", ainda que o caminho tenha de ser feito "milímetro a milímetro", tendo em conta a escassez de recursos financeiros.

Como sucessor do alemão Christoph Dammann, cujo contrato foi rescindido pelo Ministério da Cultura em Abril do ano passado, Martin André teve de concluir a presente temporada em tempo recorde e numa conjuntura difícil a partir de planificações herdadas e dos elementos novos possíveis de agendar rapidamente. Está agora a planificar a próxima, mas o facto de não contar com um orçamento a dois ou três anos, como sucede na generalidade dos teatros europeus, dificulta muito a tarefa: há que planear "a lápis e não a caneta", pois tudo pode mudar. Mas prefere não assumir uma postura negativa, que considera típica dos portugueses e também dos seus compatriotas britânicos: "Estamos sempre a lamentar-nos em vez de trabalharmos com o que temos."

A ópera tem sido uma das linhas de força da carreira - foi maestro residente da Welsh National Opera e trabalhou na Royal Opera House, na English National Opera e na Opera Nothern Ireland, entre outras - mas é a primeira vez que assume a direcção artística de um teatro. Não esquece, porém, a sua condição de músico, pelo que optou de imediato por mudar o seu gabinete (antes num corredor afastado) para o centro do edifício do São Carlos, ficando num ponto nevrálgico no que diz respeito quer à circulação de artistas residentes e convidados, quer às várias secções de produção e administração. Foi nesse novo espaço funcional, desprovido do aparato dos gabinetes dos anteriores directores artísticos, que recebeu o P2 na semana passada, ainda antes da demissão de Jorge Salavisa, presidente do Opart - Organismo de Produção Artística, entidade que gere o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.

Tem dirigido muita ópera ao longo da sua carreira, mas é a primeira ver que é director artístico de um teatro. Quais têm sido os maiores desafios do novo cargo?

Encontrei um teatro cheio de pessoas com muita experiência, qualidades humanas e energia, mas sem uma coordenação definida. Por isso, a primeira coisa que fiz foi comprar esta mesa! [aponta para uma grande mesa oval]. Comecei a organizar reuniões com todos os chefes de gabinete (da orquestra, do coro, da secção técnica, da produção, dos artistas convidados, da pesquisa e documentação, dos estudos musicais) e percebi que nunca se tinham sentado todos à mesma mesa. As coisas funcionam melhor através do contacto pessoal. Não faz sentido estar a comunicar por e-mail dentro do próprio teatro, quando temos pessoas com quem podemos falar. O correio electrónico impõe uma certa distância, torna mais fácil dizer que não. Só com diálogo e organização podemos caminhar na mesma direcção. Esta é a minha filosofia.

Pretende tornar mais ágil o trabalho de equipa...

Quero que todos percebam quais são as linhas de ligação, porque antes trabalhava-se intensamente, mas ninguém trabalhava ao mesmo ritmo. Fiz este documento [mostra um organograma] com todos os departamentos. A direcção artística tem dois braços, que são a orquestra e o coro, e os restantes gabinetes estão noutro plano, mas tudo forma uma pirâmide e todas as secções remetem para mim. É como uma colmeia, a organização do trabalho é muito clara e percebe-se facilmente quem depende de quem. Sou muito organizado na minha vida, por isso dou a mesma organização ao teatro. Também não havia um mapa global, semana a semana, com todas as salas de ensaio e todas as actividades. Aqui [mostra o mapa] temos toda a informação do teatro numa única peça de papel. Algo muito lógico, mas que não existia. Queremos sempre correr, mas as coisas fazem-se lentamente. É como um comboio, o arranque é um pouco pesado, mas se as carruagens forem todas no mesmo sentido ele avança.Além da organização, quais são as suas outras prioridades?

O público. Somos uma instituição pública - sem público o nosso trabalho não tem sentido. Pretendo recuperar o público que se foi perdendo nos últimos anos. Estou contente porque a assistência aos concertos do Salão Nobre tem crescido bastante e o próximo espectáculo, com as óperas Gianni Schicchi, de Puccini, e Blue Monday, de Gershwin, está a vender bem. O nosso corpo precisa de comer, beber, dormir, senão ficamos cansados e enfraquecidos. Com um teatro é a mesma coisa, é preciso fazer espectáculos com regularidade e qualidade senão enfraquece. A publicidade com mais poder não são os cartazes e os anúncios, é a publicidade de boca a boca. Se as pessoas passam a palavra depois torna-se uma bola de neve.

Tem projectos concretos para captar novos públicos?

Vamos passo a passo, ou melhor, milímetro a milímetro. Preciso de ver como corre este ano, mas era importante adicionar um gabinete de educação. É preciso abrir as portas, mas não é suficiente as escolas virem aqui assistir a ensaios. Temos uma orquestra com mais de 90 pessoas e um coro com 60. Pequenos grupos de cantores e instrumentistas poderiam também deslocar-se às escolas para haver um contacto mais directo, mais físico. É muito importante, pois os jovens são o público do futuro.

Esta é uma temporada de transição, mas suponho que já está a trabalhar na próxima...

Sim, mas antes da próxima temporada preciso de um orçamento do vosso Governo. Sem isso, não posso fazer nada.

Ainda não sabe qual é o orçamento para o próximo ano?

Para o próximo ano? Para este ano. Estamos em Janeiro, a próxima temporada corresponde a 2011-2012 [começa em Setembro].

Perante isso, como realiza o seu trabalho? Os artistas internacionais têm agendas programadas a dois, três anos, às vezes mais...

Exacto. Tenho uns 20 ou 30 e-mails para responder, a perguntar se é possível confirmar este concerto, este cantor ou aquele maestro... E tenho de responder, "desculpe", "lamento", "pode dar-me mais uma semana?".

O que é que o Ministério da Cultura diz?

Eu não estou contra o Ministério da Cultura, temos boas relações. Sei que não estou sozinho. A situação não é fácil, os problemas financeiros existem em todas as áreas: escolas, hospitais, transportes... Daí que estou a tentar antecipar, prever as hipóteses de programação o mais possível, para depois quando tivermos luz verde ser mais rápido. Algo como carregar num botão. Mas não quero assumir uma postura negativa. Temos a base: um belo teatro, o palco, a orquestra, o coro. E tenho bons contactos com colegas músicos a nível internacional. Há duas possibilidades. A mais simples é dizer: é impossível fazer alguma coisa, vou-me embora, obrigado e adeus. A outra é: temos só um pequeno orçamento, o que podemos fazer com mais ou menos nada ou perto de nada? Para a próxima temporada já tenho organizada uma ópera de Mozart, outra de Puccini e outra de Verdi. Já o tinha dito, mas temos de trabalhar um dia de cada vez, organizar as coisas, mas a lápis, não com caneta.Mozart, Puccini e Verdi são grandes pilares do repertório. E em relação a áreas como a ópera portuguesa ou a ópera contemporânea, qual vai ser a sua estratégia?

Depende de muitas coisas, mas convém não esquecer que esta temporada tem três óperas portuguesas. É muito. O normal será uma por temporada. Em 2012 comemoram-se os 250 anos do nascimento de Marcos Portugal e eu pretendo fazer uma das suas obras, mas ainda estou a estudar a questão. Este projecto e outros poderão ser feitos fora do grande palco. No actual panorama financeiro, não faz sentido investir numa grande encenação só para fazer cinco vezes. Poderá ser uma produção mais simples no Salão Nobre, fica mais barato e se é mais barato significa que podemos fazer mais. Tenho também um projecto de encomendas a cinco jovens compositores portugueses, para escreverem pequenas óperas de dez minutos sobre um tema a designar. A ideia surgiu numa conversa com o compositor João Madureira. Ter grandes óperas como as de Verdi ou Puccini no palco da sala principal e produções mais leves nos Salão Nobre parece-me um bom equilíbrio.

Qual vai ser a sua filosofia em relação aos cantores nacionais e internacionais?

Somos um teatro internacional. É necessário ter um equilíbrio entre vozes internacionais e cantores portugueses, mais jovens e menos jovens. Aliás, para os jovens é bom partilhar o palco com cantores mais experientes.

Vem de uma tradição, como é o caso do Reino Unido, que contempla vários estúdios de ópera que funcionam a alto nível. O que pretende fazer em relação ao Estúdio de Ópera do São Carlos?

Não sei ainda. É algo que vai ter de ser discutido, precisamos de ter um projecto, mas ainda não é claro qual. Em Inglaterra, normalmente os estúdios de ópera são estruturas separadas e há financiamento através de mecenato privado. Na Holanda, Inglaterra e França, o balanço entre os mecenas privados e o Estado é mais ou menos 50 por cento, mas aqui em Portugal é o Estado que paga 90 por cento. Com os cortes nos dinheiros públicos, ficamos numa situação muito difícil. São precisos mais apoios. Estou em funções apenas há seis meses, em relação ao estúdio de ópera precisamos de repensar as possibilidades, tem de ser algo bom para o teatro e para os cantores. Quando um país tem apenas um teatro de ópera, a expectativa é muito grande, mas não é possível fazer tudo.

Que planos tem a nível de co-produções internacionais?

Tenho muitos contactos, as possibilidades são muitas, mas voltamos sempre à mesma situação. Se não temos dinheiro, não posso assinar contratos. Muitas vezes vou a teatros de ópera no estrangeiro e perguntam-me: "Quando queres fazer uma co-produção?" Eu respondo 2012 e eles dizem que não é possível, só em 2014. Mas a data de 2014 não existe na minha cabeça, para isso teria de ter um orçamento para três anos, que é o normal lá fora. Tornaria tudo muito mais simples. Por exemplo, está em aberto a participação numa produção incrível com mais três grandes teatros, que já está organizada. Nós pagaríamos apenas 15 por cento, mas seria preciso pagar já e não tenho essa possibilidade.Programar a três anos diminuiria muito os custos...

Claro, mas tem de dizer isso ao vosso Governo. É algo semelhante ao que se passou com o cravo. Quando cheguei reparei que precisávamos de um cravo para os concertos de Bach e Haydn e para algumas óperas. Uma semana de aluguer custa mais ou menos 900 euros. Um cravo custa 15.000 euros, ora, esse valor corresponde a menos do que 20 semanas de aluguer. Com o dinheiro que íamos gastar em dois anos, pagamos o instrumento. Mas conseguir esta coisa tão simples demorou imenso tempo e teve imensos entraves burocráticos. Finalmente comprei o cravo, é muito bom e é do teatro para sempre.

E a sua carreira internacional como maestro, consegue conciliá-la com a direcção artística do teatro?

Neste momento está em suspenso. Às vezes vou para Londres ou Amesterdão dirigir um ou outro concerto, mas muito pouco. Procuro dedicar-me o máximo possível ao São Carlos.
in "Público" entrevista por Cristina Fernandes

Comments